Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
25 de Abril de 2024

Problema social não se resolve com o Direito Penal

Publicado por Fernanda Favorito
há 10 anos

Por Tayrone di Martino* - Diário da Manhà

Muito além de aplicar penalidades às ações criminosas, cabe ao Direito Penal o peculiar serviço de desenvolver o juízo ético da coletividade, a partir de valores morais sólidos e caros à constituição de um Estado Democrático. Não lhe compete atuar pelo medo, muito menos pela coerção ou ainda pelo constrangimento. Doravante, por mais válidas que sejam as sanções empregadas pelo ordenamento jurídico, elas não se vinculam diretamente à natureza do Direito Penal, uma vez que o mesmo se fundamenta, antes, na justiça social e no respeito irrestrito à dignidade humana.

O não acatamento a estas duas premissas basilares tem sido o responsável pela barbárie e agido como o eixo articulador dos regimes totalitários que, apesar da usurpação e da ilegalidade do poder, ainda perduram mundo afora. Somente depois de ter clara a noção de justiça e de dignidade é que legisladores e juristas podem definir crimes, impor medidas de segurança ou aplicar as penalidades adequadas ao infrator.

Importa advertir que os conceitos teóricos que dão fundamento ao Direito Penal são emanados dos séculos XI, XII e XIII, bem anteriores ao século XX, quando foi redigida a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Daí sobressai-se a necessidade de atualizá-lo à sociedade contemporânea, principalmente após o período de Redemocratização do Brasil, com o Fim do Regime Militar, em 1985.

Atualizar não é negar o antigo, restringindo-se apenas ao novo. Pelo contrário, é ampliar horizontes sem perder aquilo que lhe é essencial: o critério de justiça reconhecido a todos os cidadãos, independente de serem colaboradores da lei ou dela infelizes transgressores. Toda atualização, usualmente chamada de reforma, não deve ser feita às pressas, desrespeitando etapas ou desconsiderando a opinião formal dos especialistas. Pelo fato de envolver a coletividade, reforma-se consultando as entidades de classe, os movimentos sociais e a sociedade civil em seu conjunto. A reforma precisa ser conduzida por pessoas com amplo conhecimento técnico, penalista, ético e jurídico, sem falar de uma vida ilibada que dê testemunho à sua atuação legal. Por via das dúvidas, o nosso Código Penal data de 1940. Época em que vigorava a Ditadura Vargas, dentro do chamado Estado Novo. Sua Parte Especial só foi reformulada em 1984. É inegável a ocorrência de que a maioria dos textos legislativos traz a conjuntura da época em que foram redigidos. Logo, evidencia-se uma lógica antidemocrática e um legado histórico de injustiça. Desde aquela época até os dias atuais difundiu-se entre nós a nefasta ideia de criminalizar a pobreza ou de conduzi-la como caso de polícia.

O Estado não demonstra eficiência à medida que pune sempre e cada vez mais. Além de ser o sinal concreto da ineficiência estatal, a imposição de penas deve ser considerada como a última instância para a recuperação dos criminosos. Um Estado que se pontua pela força exclusiva de penitenciar, e não pelo combate à desigualdade social, é brutalmente desumano e frágil em suas estruturas democráticas.

Seria muito mais crível que a competência do Estado fosse medida pela diminuição sistemática da insegurança da população, bem como pela reparação paulatina do delinquente. Não é amontoando pessoas em presídios, sem o mínimo de dignidade, que iremos reintegrá-las à sociedade. Infelizmente, nas condições em que se estabeleceu, o sistema prisional tende mais a corromper que recuperar.

A questão não é encontrar culpados nem vitimar pessoas. Quem os procura está a perder tempo ou, nos piores casos, com a intenção de desviar o foco da análise. Temos consciência dos honrados trabalhadores do sistema prisional. Na verdade, o agravamento está contido no modo como concebemos o Direito Penal. Costumamos pensar o seu desempenho a partir da criação de novas penalidades. Jamais se pensa em reduzi-las ou ao menos fazê-las mais assertivas.

A visão restritiva do Direito Penal concebe tão-somente a repressão do crime, quando deveria preveni-lo em sua nascente. Esta não se encontra em locais específicos, mas em situações de vulnerabilidades sociais, nas quais os pobres, negros e pardos são tratados com os rigores da lei, ao passo que ricos e brancos vivem à base de habeas corpus. Eis uma prática clientelista.

Outro por menor, não menos respeitável, está em questionar se a privação da liberdade resultará na redução da atividade criminosa. Se assim fosse não haveria tanta reincidência. Na verdade, não se liberta oprimindo, se liberta ampliando, não as leis, mas a consciência das pessoas, sem fazer do abuso um exercício legal do direito.

Convém salientar que não se trata de defender o infrator, muito menos de acobertar sua prejudicial ação pela perspectiva dos direitos humanos. O fato é que existe uma ideologia da punição, na qual os problemas sociais são reduzidos à aplicação de penas, intensamente severas, como se essas fossem capazes de resolver a violência que inúmeras famílias enfrentam no seu dia a dia. A ferida da fome e a ofensa moral da miséria não se resolvem com medidas punitivas autoritárias.

É fundamental assumir que a violação dos direitos não se dá unicamente no espaço público, mas, de modo aterrorizante, também acontece no espaço privado, à medida que falta moradia, alimentação e emprego. Mesmo assim, a ausência dos mínimos sociais não justifica nenhum crime. No entanto, quando concedidos, a incidência criminosa diminui significativamente. É uma questão de lógica. Como se vê a saída não vem da penalização, mas do enfrentamento dos problemas estruturais do País. Tudo isso pautado pelo viés de uma educação não só quantitativa. É prioritário que ela seja, ao mesmo tempo, qualitativa.

Por último, pertence ao campo do Direito Penal a garantia à cidadania, à segurança, à dignidade humana e a proteção do patrimônio e dos bens jurídicos de milhões de brasileiros. Toca-lhe a devida reflexão sobre o justo fundamento das leis criminais e, por conseguinte, a aplicação das penalidades que lhe são cabíveis. Só não se deve esquecer que uma de suas primeiras incumbências é limitar o poder punitivo do Estado, para que não sucumbamos à tirania da reprimenda, infligindo penalidade sobre penalidade ou à negligência ao cidadão de bem.

*Jornalista e vereador de Goiânia pelo PT

FONTE

  • Sobre o autorProfissional de Aviação Civil
  • Publicações537
  • Seguidores1259
Detalhes da publicação
  • Tipo do documentoNotícia
  • Visualizações1329
De onde vêm as informações do Jusbrasil?
Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/problema-social-nao-se-resolve-com-o-direito-penal/140231258

Informações relacionadas

Karen Luz Advogada, Advogado
Artigoshá 3 anos

O flagrante deixa de existir após 24 h?

José Francisco Rossi Filho, Advogado
Artigoshá 7 anos

Tipos penais obsoletos e falhas técnicas legislativas à Luz Da constituição e dos princípios constitucionais

Guilherme White, Estudante de Direito
Artigoshá 7 anos

Fumus comissi delicti e Periculum libertatis: requisitos necessários para a decretação da prisão preventiva

4 Comentários

Faça um comentário construtivo para esse documento.

Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)

É crescente a quantidade de pessoas que acreditam que a solução para a criminalidade está em não prender, para, de algum modo, ressocializar. Ocorre que não é a privação de liberdade em si o problema, e sim a falta de estrutura dos presídios, que impede que os presos saiam melhores do que entraram. Não existe país no mundo que resolveu o problema da criminalidade simplesmente deixando de prender os seus criminosos. Além disso, é direito da vítima ver o seu algoz seu punido nos limites da lei.
O que realmente resolveria, a meu ver, seria uma reestruturação do sistema prisional brasileiro, para que o preso deixasse se ser apenas um peso para o Estado, e trabalhasse internamente para bancar o seu sustento enquanto estivesse cumprindo pena, tivesse a oportunidade de estudar e participar de cursos profissionalizantes e aprendesse sobre disciplina e sobre o seu papel dentro da sociedade.
Resumindo, não acho que o problema seja o fato de alguém ser preso para pagar por seus crimes, mas sim o fato de muitos criminosos simplesmente não respeitarem as leis e o estado de direito, achando que a sociedade tem de pagar por suas escolhas erradas. continuar lendo

É muito simplista acreditar que o Direito Penal é a solução para as nossas mazelas... continuar lendo

Lá vem, de novo, o pessoal dos direitos humanos dos bandidos a passar a mão na cabeça das feras em detrimento da justiça, foi seguindo este caminho que chegamos nesta situação de criminalidade e impunidade.
A solução para quantidade e variedade de crimes que infelicitam nossa sociedade está em capacitar e qualificar a polícia civil para a rápida detecção e enquadramento dos delinquentes e no célere julgamento e aplicação das penas. Acabando com a sensação de impunidade o crime volta aos baixos níveis que desejamos.
Aumentar a escolaridade e diminuir a desigualdade social, como ocorreu nas últimas décadas no Brasil, se mostrou insuficiente, pois a criminalidade só fez aumentar neste período, são condições essenciais mais não suficientes, é necessário o exemplo ético e eficácia contra a impunidade (absoluta certeza da punição). continuar lendo